Esqueceu-se de mim

Já estavam na terceira partida de damas e a chuva ainda caía forte lá fora. Ela podia escutar os volumosos pingos que batiam nas janelas do seu apartamento sem piedade. Por um segundo, percebeu que os sons do tique-taque do relógio juntamente com o barulho ritmado da chuva formavam uma melodia lenta e serena, que seria perfeita para a ocasião. Ela era romântica de indecisa. Quarenta e nove por cento romântica, cinquenta e um por cento indecisa. Enquanto o melhor amigo analisava qual peça iria mexer, ela se pegou pensando se era a hora de dizer toda a verdade. Talvez fosse. Afinal, há muito tempo ela ensaiava como iria dizer a ele. E se estragasse a amizade por isso? Mas, e se ele sentisse o mesmo que ela? Na verdade, pensou, ela devia ser um por cento romântica e noventa e nove por cento indecisa.
- Rá! Ganhei de novo! – ele bateu a mão na mesa, enquanto ria da expressão que ela fez.
Ela encarou o tabuleiro sem acreditar.
- Mas eu estava ganhando! Eu tinha duas damas e você nenhuma! Como fez isso?
- Eu me garanto. – começou a reorganizar as peças para uma quarta partida. – o que você tem? Está distraída...
Ela piscou, ficando ereta na cadeira. Não podia revelar o motivo... Não queria, na verdade. Por um segundo, quis dizer logo tudo o que sentia só para ver a reação dele.
- Só estou preocupada com essa chuva... – preferiu assim justificar.
- Arrã. Sei... Você está é apaixonada.
Apaixonada. Nossa, a palavra bateu em cheio no peito dela, e logo depois começou as bochechas arderem. Sim, por você, as palavras ecoaram dentro da sua cabeça.
- Você está louco? Eu? Apaixonada?
- Pode falar – ele disse, estreitando olhar e debruçando-se sobre o tampo de vidro da mesa – Eu sou seu melhor amigo, lembra?
Sim. Infelizmente é só meu amigo.
- Para. Eu não estou apaixonada por ninguém.
Então, tão repentinamente como veio, a chuva se foi, dando lugar a um chuvisco tranquilo, mas ainda assim com gotas que faziam um certo barulho.
- Bom, está na minha hora – ele olhou rapidamente o relógio prata antes de fazer menção de se levantar.
Por favor, não vá.
- Você é muito grudento – ela deu um tapa no braço dele – está aqui desde as duas da tarde, e eu tenho milhões de coisas para fazer.
- Me ame menos, por favor. – ele pediu brincalhão, enquanto era acompanhado por ela até a porta.
Bem que eu queria te amar menos. Bem que eu queria não te amar de jeito nenhum. Isso me tortura, só quero ter certeza de que sente o mesmo que eu.
Quando parou diante da porta e a abriu, ele virou-se para ela, checando os bolsos freneticamente.
- Ei, eu esqueci minhas chaves aí?
Meu Deus, os olhos dele a hipnotizavam de um jeito até assustador, aquele verde água infinito... E a voz? A voz parecia uma música de tão linda. Ela teve que apertar a maçaneta da porta com força para se concentrar no que ele dizia.
- Olha lá pra mim, por favor. Acho que deixei minhas chaves em algum lugar aí.
As palavras quase voaram da garganta dela, exprimindo todos os sentimentos, todos os pensamentos. Não havia ninguém no corredor, seria o momento certo para se declarar.
- É sério. Estou atrasado. – ele chegou mais perto, sacudindo-a pelos ombros.
Que droga, ela pensou, ele iria acabar percebendo que havia algo de errado.
- Desculpa, eu só... Fiquei um pouco tonta.
- Você quer uma água? Vamos para dentro, eu te coloco na sua cama.
Não! Ele realmente era a pessoa mais ingênua da face da Terra.
- Relaxa, já estou melhor... Eu só quero te dizer uma coisa.
- Diga.
Ela podia ouvir o coração martelando cada vez mais rápido. A mão que segurava a maçaneta estava muito suada. Ela tomou fôlego e coragem.
- Suas chaves estão em cima do sofá.
- Uou, valeu, já estava entrando em pânico. – ele passou por ela e entrou no apartamento vazio, e voltou quase em um segundo, enfiando a chave no bolso.
Ela deu um sorriso sem graça.
- O que seria de você sem mim, hein?
- Acho que eu não seria ninguém. – e deu um beijo demorado na bochecha da melhor amiga.
- Ah! Você não pode sair nessa chuva assim, pode ficar resfriado!
- Obrigada, mamãe.
- Cala a boca. Vou pegar um casaco para você cobrir a cabeça.
- Não precisa, sério mesmo.
- Tem certeza? – ela indagou, arqueando as sobrancelhas.
- Claro que sim. Já vou indo.
Deu mais um beijo de despedida e saiu.
Quando ela fechou a porta, teve vontade de gritar: Na verdade, não esqueceu só das chaves! Esqueceu de mim! Fica comigo e me leva para longe daqui.
Mesmo que ela gritasse, ele já teria entrado no elevador.
Lá fora, antes de entrar no carro, ele pensou:
Quero teu casaco. Quero casaco teu. Quero casar contigo.


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